Nem todos
os mais velhos conseguiram sentar-se, de maneira que alguns ainda tinham que ir
em pé, cambaleando entro um solavanco e outro. Tantos eram os passageiros que
não era mais preciso apoiar-se em nenhum lugar, ia-se espremido entre estranhos.
Todos formavam uma só massa, que dentro do veículo-lata tomava forma viva, indestrutível.
No fenômeno do lotado ignoram-se as convenções. Os costumes são todos deixados
à porta, como guarda-chuvas deixados na entrada do seco para serem pegos de
volta na saída, quando recobram sua utilidade. O único orgulho guardado é o do
silêncio, que entre estranhos continua sempre o código comum de conduta. Não se
conhece aquele no qual se encosta, o outro cujo rosto encosta no seu, as mãos
estranhas que se esbarram constantemente. Se conhece apenas uma identidade, uma
conformação pública de quem não reclama, de quem aceita o embaraço como parte
do trajeto. E entre uma estação e outra saem alguns conformados e entram mais
outros. Lentamente cada um encontra seu aperto, invadindo e tendo invadida toda
e qualquer privacidade, mas evitando o olhar. O contato é presente em todas as
formas, menos pelos olhos, iguais às putas, só que vestidas. Uma troca de
olhares seria muito íntima e qualquer pudor que até então havia sendo evitado
pelo senso de comunidade seria trazido à tona, arruinando a vida de todos. Por
isso casa um cumpria seu dever e pelo bem do organismo olhavam para qualquer
canto que fosse – as luzes fosforescentes, os mapas coloridos dos trajetos, o
desenho dos postes de apoio no teto.
Num momento
infeliz de pura má sorte dois trens atrasaram na partida de uma estação,
fazendo com que os outros dois subsequentes que vinham atrás tivessem que
parar, quebrando toda a sinfonia de máquina, no meio do escuro de um túnel,
paralelos um ao outro, o início de um junto ao final do outro, ambos cheios de
gente. O solavanco maior que os de costumes alardeou os passageiros que tomados
de assalto deixaram o transe. Por descuido, distraídos de todas as normas,
todos olharam para a tentação ao lado. Num instante de magnificência, dezenas
de centenas de olhares foram trocados. De par em par, os passageiros dos dois
trens encontraram um alguém com sua visão e a ilusão de muito tempo perdeu o
sentido. O ar se encheu com o cheiro do terror e o silêncio que antes era de
complacência era agora de pânico. Pânico não pelo parar do trem ao qual todos
estavam acostumados, aquilo era frequente – era um questão de tempo até que
voltasse a andar. O pavor se manifestando agora vinha junto da epifania
coletiva, da realização do macabro. Todos perceberam que na verdade não eram
passageiros de uma linha de transporte, mas sim gente dentro de metal em um
túnel cavado debaixo da terra. E o metal, o túnel, e sua própria presença
naquela mesma situação eram todos efeitos de sua deliberação. O que faziam ali,
perguntavam-se uns aos outros com o olhar. Centenas de animais sem poder algum
sobre o próprio destino, paralíticos com a familiar estampa do medo na cara, enterrados
sob sua civilização. Em meio ao choque e ao desespero calado, a única coisa que
tinham era a si mesmos. Na verdade nem isso: todos olhavam para alguém no vagão
oposto e duas janelas separavam o abismo da solidão em que todos se encontravam
do conforto de um último abraço entre irmãos. Alguns derrubaram lágrimas,
outros perdiam a consciência, mas o silêncio era constante. O silêncio do
incompreensível, do arrependimento, da impotência, da insignificância, do
incrível, o silêncio dos inocentes e o dos culpados também. Não foi possível
perceber o quão rápido tudo acontecera, o silêncio logo foi quebrado pelo
barulho dos trilhos. Lentamente quebraram-se os laços e qualquer maravilha for
ofuscada pelo movimento da máquina. Os passageiros logo acharam outro ponto
para olhar e os dois trens seguiram, debaixo da terra, cheios de gente, cada
qual para seu respectivo ponto final.
Gabriel Abreu