quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Carta depressiva

Sou um nada. Sou só mais um. Aliás, só menos um. Sou o lixo tóxico da humanidade, o resto do resto do resto de um projeto de ser humano.

Mais insignificante que o estrume de teu cachorro, que um fio de teu cabelo, que um ponto no plano cartesiano. E não um ponto que é solução de equação, nem um do eixo x, nem do y. Não chego a ser nem um daqueles que são tomados como exemplo aleatório de coordenadas. Sou o ponto esquecido, ignorado, remoto, que nunca será olhado. Sou o lixo tóxico da humanidade.

Sou o mau amigo, a ovelha negra da família, a vergonha da sociedade. Mais indesejável que a barata que te sobe a perna, que o terremoto que te destrói a casa, que o tapa em tua cara. Sou o cisco no teu olho, a artrose em teu joelho, a catapora em tua pele. Mais odiado que o diabo pela religião, que o golfinho pelo tubarão, que os judeus por Hitler. Sou o lixo tóxico da humanidade.

Sou o esquecido, o incompetente, que para nada serve, que ninguém ajuda, que não conhece boa ação. Sou o início do fim do mundo. Aquele que merece ser sacrificado, morto, apredejado. Aquele que não faria nada melhor do que sumir para sempre. Sou a pedra no meio do caminho da sociedade, sou o atraso do desenvolvimento. Se a alguém causa inda pena a minha chaga, esse alguém sou eu. Desprovido de compaixão, de solidariedade, sou o lixo tóxico da sociedade. O resto do resto do resto de um projeto de mau ser humano.

Sou por ti odiado, mesmo que não saibas, pois motivos para não o fazer, não há. Sou a mosca da sopa, a gravidez indesejada, a frigidez, o aborto. Sou a causa de todos os teus maus, todas as tuas falhas. Minha existência atrapalha tudo e todos. Sou o erro da natureza, o errante da natureza! O escarrado e apredejado, o ignorado, despercedibo, o crucificado, o indesejado, o insuportável, o anti-ético, o fora-da-lei, e incontestavelmente com razão. Sou o resto do resto de um projeto de lixo tóxico da sociedade.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

T. C. O., 5º da série

Divago hoje sobre as desilusões. Sejam elas as piores, ou mais suportáveis, as mais banais, ou as mais marcantes. Afirmo, pois, que desilusão boa não existe. E que as piores são justamente as mais banais. Menos dói ser deixado por um grande amor do que observar que o trajeto da sacola plástica flutuante não correspondeu às expectativas. Há, de certo modo, um grande preparo para as grandes desilusões, o que torna grande as pequenas. Fim de semana importante, grande festa ao ar livre agendada, e chuva. Todos sempre tiveram consciência dessa possibilidade. Todos ficam desiludidos por fora, reclamam, xingam, lamentam, mas por dentro há total conforto. Relacionamento importante, grande festa ao ar livre agendada, e fim. Ambos sempre tiveram consciência dessa possibilidade. Ambos ficam desiludidos por fora, reclamam, xingam, lamentam, (ou pelo menos um, o outro fica desiludido por baixo da pele) mas por dentro (lá dentro) há total conforto.

Não se valoriza as situações cotidianas! Computador importante, grande carregamento de página agendado, e demora. Todos sempre tiveram consciência dessa possibilidade, mas não aqueles que a isso não estão acostumados. Nestes a ferida é maior do que aquela do fim de semana, do relacionamento. Costume é a chave. O costume nos cria ilusões que ao serem desfeitas, desfazem parte da alma.

Já pude pensar que personalidades são determinadas por grandes acontecimentos. Percebo hoje que estes apenas despersonalizam aquilo que o cotidiano teve o trabalho de personalizar. A rotina faz o ser humano. Aquilo que dela se exclui, o desfaz. A rotina desgasta o ser humano. Aquilo que dela se exclui, o gasta. Uma quebra inesperada da rotina determinante, acaba por indeterminar. Exatamente aquilo que a não-rotina é encarregada de fazer. Ela, por sua vez, quando outros rumos toma, acaba por determinar.

As grandes desilusões nos põe nos eixos, deveríamos agradecer, não lamentar. Mas sim lamentar pela mensagem não recebida, pela partitura que cai no chão, pelo desafino. E o coração que bate nestes peitos, que continue, como sempre, a rotinar as não-rotinas, a transformar em pequenas as grandes desilusões, a rotiná-las e finalmente tornar insuportável a sensação de não tê-las.