sábado, 27 de abril de 2013

Sobre o natural


 Naquela tarde de que nunca me lembraria, deitei na grama alheia. Estendi o lençol sobre o tapete da floresta, bem em cima das plantinhas cujo nome não me lembro. Pousei o corpo lentamente sobre a toalha e senti o meu peso maltratar a natureza. Enquanto o chão moldava a minha silhueta, me sentia observado. Sentia os habitantes locais percebendo a minha presença, desconfiados do corpo estranho que aparecera sobrenaturalmente. Eu era evitado, tudo acontecia em torno de mim, sem que eu participasse. Mas com o passar dos minutos e o transcorrer do sol, eu passei também a ser parte da natureza, simples unidade da vida no jardim. Os besouros, as abelhas, as formigas, as libélulas, agora ninguém mas parecia me perceber, eu era apenas um tronco contra o qual um alguém distraído voava dez vez em quando. Nunca foi tão bom ser ignorado. O estranho virara comum, o antigo se adaptou ao novo, talvez até sem perceber, mas se adaptou rapidamente. E eu fui o único que senti a mudança. É incrível – pensei naquela tarde – como nós somos a única parte da fauna que não nos adaptamos ao novo, digo ao verdadeiramente novo, ao sobrenatural. Não estamos no topo da cadeia, mas sim dentro dela, tacanhos. Cada dia que passa nos tornamos mais e mais parte dela, me sinto apenas mais uma barra nas grades da cela. Somos penitenciários do pudor, sentimento que só nós, animais humanos, sentimos. Uma girafa nunca se sentiu envergonhada, o porco nunca ficou sem graça.  E muito menos os insetos do jardim tiveram o rosto em rubor porque sem querer esbarraram em mim. É bem verdade que não pediram desculpas, mas quem tem tempo pra desculpas quando se há por todos os lados flores a polinizar. Passei a tarde inteira naquela grama, lisonjeado pelo flerte dos insetos, com ciúmes apenas das margaridas, a quem eles davam mais atenção.

Gabriel Abreu

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Dama no armário



Se escrevo tenho que buscar a máquina no fundo esquecido do armário, o peso sempre maior que o da memória. Apoio-a numa mesa que não mais a recebe como antes, não é mais tão bem-vinda. Ficam fora de contexto as partes descomunais, o tamanho grita excesso e a máquina, que teve sempre sua glória, fica um pouco  envergonhada. Mas não perde a majestade. Funciona à eletricidade e por isso enquanto não é datilografada, faz um ruído de reclame: “Cadê? Não vem nada?”. Manifestam-se umas teclas e outras letras, mas logo predomina de novo o silêncio maquinário, todas as peças já cientes do fracasso. Fica ali, velha e importante, rainha de outros textos, barulhando na mesma busca minha. Minha máquina suplica e eu não posso ajudar. Admito a decepção e finalmente a máquina volta pro armário, no canto óbvio de que sempre se esquece, juntando poeira e amargura, minha única dama de ferro.

Gabriel Abreu