No pátio da infância erguia-se uma laranjeira infinita. Dava
sempre de boa vontade os frutos grandes que só se deixavam segurar com as duas
mãos. Nem fazia questão que lhe subissem o tronco para arrancá-los: era
partidária da não violência e simplesmente os deixava cair no solo. Viam aos
montes, de modo que se não se prestasse atenção escureciam rapidamente e perdiam
o sabor e a suculência. Não fazia mal, a planta não se incomodava de ter o
esforço desperdiçado.
O importante era o
suco de suas crianças. Dava também sombra em abundância. A grande mancha negra
que lhe nascia pela manhã à esquerda a rodeava conforme passava o dia, como um
siamês vigilante debruçado sobre a grama. Morria junto com o sol, alongada na
outra extremidade do terreno, deixando mais uma vez a irmã solitária na
penumbra das seis. Os ventos loucos do interior começavam então a soprar-lhe as
incontáveis folhas, que gritavam alucinadas num caos frenético até o cair total
da escuridão. Conseguia finalmente descansar os galhos violentados no sossego
dos grilos cantantes, instigados pela coaxa das rãs, até que vinha mais uma manhã,
quando começavam de novo os meninos a trepar-lhe a estrutura. Estava enraizada
numa parte mais alta do quintal e viera à família com o terreno. Não se fazia
ideia de sua idade, mas seu espírito era incansável. Laranjada após laranjada viu
os noivos recém-casados se mudarem e começarem família, viu suas quatro meninas,
uma a uma, nascerem e crescerem, as viu deixando a casa, retornando com sua
própria prole. Viu surgir no correr de algumas gerações um emaranhado de
parentes, de pais e sobrinhos, de sogras e cunhados, de tios e genros, de primos
de intermináveis graus, todos seus afilhados. Viu plantarem afeto, colherem
desavenças. Estava presente nas brigas, nas paixões. Presenciou todas as festas,
entediava-se também aos domingos. Recebeu primeiro o patrono da estirpe quando
ainda era jovem. Já era grandiosa na época, mas seu jardim era baldio. O moço
tinha uns olhos azuis bondosos que pareciam cansados, mas que exibiam também um
brilho tímido que as laranjas adivinharam ter por causa do matrimônio recente
com a jovem que vinha ao seu lado. Ele pousou a palma da mão em seu caule largo
e fechou os olhos pra acolher dali em diante o seu novo destino. A árvore fez o
mesmo e foi pra sempre feliz. Anos depois houve uma tarde em que o sol estava
em seu pino máximo, cegando a todos em pleno verão gaúcho. Passava pouco do
meio-dia e como em todos os outros dias de verão quente a família se escondia
na sombra fresca da casa em um meio sono depois de almoçar polenta e guisado.
Como em um serpentário de jiboias bem alimentadas, todos descansavam ainda com
o gosto da farinha de milho na boca. Estavam de férias. No pátio se estendia
também como gente a cadela centenária, à qual faltavam quase todos os dentes,
mas ainda eram pretos todos os pelos. Roncava alto perto do roseiral donde
brotavam, apesar do janeiro abrasador do Rio Grande, as mais belas rosas da
cidade, vermelhas de sangue em sua maioria, mas brancas em alguns poucos
espaços, essas ainda maiores que as outras, como que para guardar o segredo da
indecência rubra. Logo ali existia um parreiral que fora sempre cultivado pela jovem
mulher do moço de olhos azuis, agora já uma anciã dona de diversas rugas,
debaixo das quais, no entanto, exibia ainda o mesmo semblante forte de
antigamente. Suas uvas verdes por natureza davam sempre impressão de pouco maduras,
até que seu gosto gelado provava aos que se atreviam a brigar por elas com as
abelhas que de fato as aparências enganam. Atrás, uma piscina modesta que na
imaginação oceânica dos meninos virava mar. Ainda existia um pequeno terraço
onde se subia por uma escadinha erguida ao lado da pequena horta e onde se
estendiam roupas e sonhos, ambos tendo que dividir espaço com a antena
monstruosa de televisão que com o tempo passou a servir para nada, mas que dali
ninguém nunca tirou. Dali as crianças pulavam para o telhado da casa, laranja
árido da mesma cor dos tijolos, o que dava à construção uma aparência Severina.
No meio das telhas equilibravam-se três ou quatro chaminés que liberavam no
inverno do Sul a fumaça do calor das lareiras. A parte em frente à casa era,
como na maioria das residências do estado, um jardim de fachada, feito para os
passantes, aos quais eram exibidos os mais bem cuidados arbustos, as mais
coloridas violas tricolor, e as mais abundantes genistras, todas numa vitrine
verde de paz e boa vizinhança. Ali as mulheres sentavam às tardes, de cuia
cheia até a boca de erva mate e curiosidade absoluta para a vida dos outros. Na
parte de trás da casa, onde tudo de fato ocorria, para delimitar a divisão entre
grama e pedra, foi construída pelo próprio dono uma mureta de contenção, por
que a terra de onde saiam as raízes da laranjeira vinha em nível mais alto, e o
homem sentiu que não seria capaz de arrancar do solo o ser com o qual fizera um
voto eterno de felicidade. Aquele murinho acabou virando palco de muitos espetáculos,
onde as crianças interpretavam comédias e sofriam acidentes. Quase caindo
também de cima do muro estava a laranjeira, que na tarde de que quase esqueci
que estávamos falando descansava como o resto de sua família. De manhã haviam se
pendurado em seus galhos e espremido os frutos da queda, haviam brincado em sua
sombra e se apoiado em sua fortaleza. Haviam admirado suas folhas verdes
máximas, seu tronco de cascas secas salientes, seu esplendor de vegetal maciço.
Haviam como sempre na vida a usado de instrumento de regozijo. Ela não se
incomodava, era esse o seu destino, seu alento, e também seu prazer. Gozava das
risadas de suas crias, das conquistas de seus filhotes, da esperança de seus
companheiros. Disfarçada na natureza do quintal plantou no cerne daquela
família uma semente que germinou laços. Serviu a todos como se fosse a única
coisa que soubesse fazer. A única coisa que soubesse fazer de melhor. E quando
não servia mais pra nada, serviu de lenha pro calor da fumaça das três ou
quatro chaminés do telhado laranja. Então até o final da fogueira e para o
resto de sua vida protegeu seus meninos do frio.
Gabriel Abreu