Choveu
forte em minha vida. Choveu forte a vida inteira. Às vezes, ventava também.
Fazia frio também, às vezes. Mas chovia o tempo inteiro. Ainda chove. Quem sou
eu para falar do tempo? Não há rugas em minha cara. Não há fios brancos em meus
cabelos. Não há legados para minha existência nem netos para meus pais. Não há
história para meu nome, não há honra para meus textos. Não há glória, não há
paz. Não há experiência para meus medos, não há conforto para minhas angústias.
Há de haver? Sou virgem de tempo; para mim, há de sobra. Enquanto outros
possuem só a sobra dele. A primavera que Florbela cantou assim florida ainda
não despontou em minha vida. Agora somente chove e venta e faz frio no inverno
de uma espera. Onde foi parar meu tempo? Será que ele algum dia existiu? Será
que ele algum dia retornará? Numa das manhãs de minha velhice, quando não
houver sonhado, levantarei de um travesseiro limpo uma face cheia de pregas e
me olharei então no espelho de uma casa que não é minha. Eu não tinha este
rosto de hoje, Cecília, assim calmo, assim triste, assim magro. Em qual dos
outros espelhos da vida ficou perdida minha face? Ficou perdida minha fúria,
minha alegria e meu vigor? Em que espelho fiquei perdido eu mesmo? O
incomensurável tempo vai de segunda a domingo e cabe na moldura de um reflexo
apressado, que logo reflete algo novo. E que logo esquece como eu me parecia.
Na segunda, o tempo passa pro moço no ônibus, que leva seu filho num carrinho e
que o olha perplexo, com orgulho e ciúmes. Que vale dele as próprias causas e
que espera os êxitos pra si não mais possíveis. Que deixou de ser homem pra
tornar-se herói. Na terça, o tempo passa para as árvores, de cujos galhos são
arrancadas as folhas secas que pagam respeito à federação do tronco até o
instante da queda na batalha do outono. Umas envelhecem laranja incendiadas,
outras num rubro doente, e algumas até num violeta desavergonhado. Mas o fim
vem pra todas, independentemente do quão verde um dia foram. Na quarta, o tempo
passa para o relógio que não controla os ponteiros. Carregam sozinhos a pesada
soma dos dias no total das semanas e o produto dos meses na potência dos anos.
Vai ligeiro na frente o dos minutos e atrás, retardatário e cruel, o caçula das
horas. Na quinta, tira-se o relógio da parede, mas os ponteiros de um outro
continuam rodando sem prestar atenção em mim. Que se quebrem todos os relógios
do mundo para que nunca novamente saibamos quando sorrir e quando chorar! Na
sexta, o tempo passa para o menino, que, em algum momento dos últimos segundos,
tornou-se gente grande e deixou a doçura da infância pra nunca mais parar de
amargar o sabor acre da madureza. No sábado, o tempo não passa para ninguém. No
domingo, o tempo passa pra mim que mal o percebo passar. Dane-se minha idade!
Vivi tempo suficiente apenas pra saber que preciso viver mais. Mas o tempo
escorre por meus dedos e faz questão de se sentir escorrer. Faz questão de
encurtar a alvorada de minha noite, Florbela! Tome tempo!, um pouco de
realidade Espanca. Que da ilusão de seus ponteiros ninguém se ilude mais.
Ninguém aguenta mais se iludir.
E que
termine meu dia num crepúsculo atemporal.
Que para o
tempo me saiba ceder... Para se eternizar...
Gabriel Abreu