segunda-feira, 1 de julho de 2013

algo sobre tempo


Choveu forte em minha vida. Choveu forte a vida inteira. Às vezes, ventava também. Fazia frio também, às vezes. Mas chovia o tempo inteiro. Ainda chove. Quem sou eu para falar do tempo? Não há rugas em minha cara. Não há fios brancos em meus cabelos. Não há legados para minha existência nem netos para meus pais. Não há história para meu nome, não há honra para meus textos. Não há glória, não há paz. Não há experiência para meus medos, não há conforto para minhas angústias. Há de haver? Sou virgem de tempo; para mim, há de sobra. Enquanto outros possuem só a sobra dele. A primavera que Florbela cantou assim florida ainda não despontou em minha vida. Agora somente chove e venta e faz frio no inverno de uma espera. Onde foi parar meu tempo? Será que ele algum dia existiu? Será que ele algum dia retornará? Numa das manhãs de minha velhice, quando não houver sonhado, levantarei de um travesseiro limpo uma face cheia de pregas e me olharei então no espelho de uma casa que não é minha. Eu não tinha este rosto de hoje, Cecília, assim calmo, assim triste, assim magro. Em qual dos outros espelhos da vida ficou perdida minha face? Ficou perdida minha fúria, minha alegria e meu vigor? Em que espelho fiquei perdido eu mesmo? O incomensurável tempo vai de segunda a domingo e cabe na moldura de um reflexo apressado, que logo reflete algo novo. E que logo esquece como eu me parecia. Na segunda, o tempo passa pro moço no ônibus, que leva seu filho num carrinho e que o olha perplexo, com orgulho e ciúmes. Que vale dele as próprias causas e que espera os êxitos pra si não mais possíveis. Que deixou de ser homem pra tornar-se herói. Na terça, o tempo passa para as árvores, de cujos galhos são arrancadas as folhas secas que pagam respeito à federação do tronco até o instante da queda na batalha do outono. Umas envelhecem laranja incendiadas, outras num rubro doente, e algumas até num violeta desavergonhado. Mas o fim vem pra todas, independentemente do quão verde um dia foram. Na quarta, o tempo passa para o relógio que não controla os ponteiros. Carregam sozinhos a pesada soma dos dias no total das semanas e o produto dos meses na potência dos anos. Vai ligeiro na frente o dos minutos e atrás, retardatário e cruel, o caçula das horas. Na quinta, tira-se o relógio da parede, mas os ponteiros de um outro continuam rodando sem prestar atenção em mim. Que se quebrem todos os relógios do mundo para que nunca novamente saibamos quando sorrir e quando chorar! Na sexta, o tempo passa para o menino, que, em algum momento dos últimos segundos, tornou-se gente grande e deixou a doçura da infância pra nunca mais parar de amargar o sabor acre da madureza. No sábado, o tempo não passa para ninguém. No domingo, o tempo passa pra mim que mal o percebo passar. Dane-se minha idade! Vivi tempo suficiente apenas pra saber que preciso viver mais. Mas o tempo escorre por meus dedos e faz questão de se sentir escorrer. Faz questão de encurtar a alvorada de minha noite, Florbela! Tome tempo!, um pouco de realidade Espanca. Que da ilusão de seus ponteiros ninguém se ilude mais. Ninguém aguenta mais se iludir.

E que termine meu dia num crepúsculo atemporal.
Que para o tempo me saiba ceder... Para se eternizar...

Gabriel Abreu

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