quinta-feira, 7 de agosto de 2014

meu pai e nosso cinema


Quando eu era mais jovem meu pai costumava me levar ao cinema todos os domingos. Depois de um almoço de família cerimonioso voltávamos pra casa e meu pai nos obrigava a escovar os dentes. Subíamos as escadas em direção a nossos quartos e antes mesmo de chegar ao segundo andar ouvíamos seu berro da sala de jantar – “Gabriel, Amanda, escovar os dentes!”, nossa esforçada malícia em vão já que não havia nenhuma chance de disfarçar a evasiva às obrigações. A higiene bucal sempre veio em primeiro lugar e hoje sei que àqueles berros de domingo devo o meu sorriso. Meu pai então me chamava e, ainda mal tendo chegado em casa, saímos para o shopping – onde na Barra da Tijuca se vai ao cinema. Ele nunca em sua vida entrou em um website para ver o que estava em cartaz. Os domingos sempre começavam de manhã cedo com o café, quando depois do jornal diário ele abria a Veja Rio e ia direto às páginas que listavam em letras minúsculas todos os filmes em exibição na cidade. Procurava pelo nosso bairro, pelo nosso cinema favorito e depois lia as descrições de cada título, circulando com uma caneta azul aqueles que o interessavam. Meu pai sempre foi antiquado e metódico, características de sua personalidade de que mais gosto. Seguíamos ao local escolhido, geralmente o mesmo, que aqui prefiro não revelar, é muito pessoal. Íamos apenas eu e ele. Minha mãe e minha irmã nunca deixaram de ser convidadas, mas na cultura de nossa família a tradição era apenas nossa, dos homens. Meu pai sempre escolhia um filme “cabeça”. As tramas internacionais eram o que mais se via em nosso repertório, geralmente incluindo crimes políticos resultando em tiroteios. Meu pai nunca me levou para assistir um filme dublado. Às vezes não conseguia seguir o enredo, às vezes me perdia em uma das falas, e inevitavelmente ficava de fora da maioria do humor, cuja ironia meu conhecimento de mundo ainda não era suficiente para entender. Mas nada me dava mais prazer que ouvir a gargalhada volumosa de meu pai e eu acabava rindo também, em parte para fingir que entendia a piada, em parte apenas para rir junto com ele. Muitas das vezes eu era o mais jovem na sala do cinema, mas foram ali as primeiras vezes que eu me senti adulto. No silêncio do escuro meu pai sentava ao meu lado e conversávamos sobre minha semana na escola antes dos trailers e ele ali era a pessoa mais inteligente que eu conhecia. Nossas idas ao cinema aos domingos eram parte de minha rotina, mas para mim sempre foi claro o valor daquelas nossas tardes. Meu pai nunca foi como os pais que levavam seus filhos à praia, ou que jogavam futebol com eles, nunca foi como os pais que sentavam no chão para brincar. Mas naquelas tardes em salas quase vazias de cinema, dividindo um grande saco de pipoca em um silencio reconfortante, eu solenizava a minha figura paterna. Aquele era meu pai, como nenhum outro. Aquele nosso costume resultou em uma paixão e hoje mantenho o mesmo hábito. No entanto, há anos que não vou ver um filme com ele no cinema, mas da próxima vez que estivermos juntos irei sugerir o programa. Iremos num domingo de sol, só eu e ele, ao mesmo cinema de nosso passado. Compraremos pipoca e discutiremos algo trivial antes dos comerciais. Escolherei o filme mais complexo em cartaz e entenderei toda história. Poderei rir genuinamente das piadas, mas sei ainda assim que parte da graça estará apenas em dividir gargalhadas com meu velho companheiro.

Gabriel Abreu

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