Isso não é uma crítica, apenas o
registro de uma experiência que não quero nunca esquecer.
Marina Abramovic em Londres! A
coincidência de estar na mesma cidade onde a última obra da artista está aberta
ao público não podia ser ignorada. Eu conheci o trabalho de Marina pelo
documentário “Marina Abramovic: The Artist Is Present” que mostrava toda
trajetória de sua carreira até a preparação e execução de seu último trabalho,
de mesmo nome, que foi exposto no MoMA em Nova Iorque há alguns anos atrás.
Daquela vez, Marina passava horas a fio sentada em frente a quem se dispusesse
a vir visitá-la. As filas eram enormes e a presença em massa do público foi a
prova da fama e celebridade que essa “guerreira da arte performativa” (como
gosta de ser chamada) construiu pra si mesma. Mas Marina não é do gosto de
todos. Existem muitas críticas à ela e a seu trabalho, a principal sendo aquela
que alega que Marina está apenas interessada em chamar atenção. De fato,
atenção ela chama (não haveria como não chamar tendo feito todos os absurdos
que já fez, puxando seus limites físicos e psicológicos em cada novo trabalho).
No entanto eu não conseguia aceitar o argumento de que Marina fez tudo o que
fez só pela fama e então resolvi eu mesmo checar com meus próprios olhos. Tudo
o que sabia era que a sua nova obra, intitulada “Marina Abramovic: 512 Hours”,
consistia em nada além de, por 512 horas, Marina, a Serpertine Gallery e o
público. Segundo ela, a intenção do projeto era ver qual seria o resultado da interação
de energia entre esses três elementos. Se o experimento seria um sucesso ou um
fracasso não havia como se saber. Acordei as 7 da manhã imaginando uma grande
fila na frente da galeria. Na manhã fria de domingo atravessei o Hyde Park até
o pequeno casarão no meio do verde. Na porta umas 15 pessoas esperavam pela
abertura. Cinco minutos para as dez, éramos por volta de 40 pessoas, nenhum de
nós sabendo o que esperar. Foi quando viu-se surgir na recepção, pela porta de
vido da entrada, Marina Abramovic, vestida com uma camisa branca toda abotoada,
uma calça preta, cabelo longíssimo preso. Marina botou um pouco de perfume
atrás de cada orelha e, depois de respirar fundo, abriu as duas portas
principais da Serpentine Gallery. “Bom dia!”, exclamou em inglês. A fila
começou a andar e a todos os visitantes que entravam Marina estendia a mão e
nos dava um aperto firme, desejando as boas vindas a cada um. Quando foi minha
vez olhei para seu rosto e tentei perceber tudo o que conseguiria naquela curta
interação: suas sobrancelhas longas, seu nariz protuberante, seus lábios
fartos, suas rugas aparentes (ela não usava nenhuma maquiagem). Marina é uma
mulher comum e maravilhosa. Todos deixamos nossos pertences na entrada –
inclusive nossos relógios, a noção de tempo ali era proibida. Tínhamos também
de pôr um grande fone de ouvido para vedar qualquer ruído, aquela era uma
experiência silenciosa. A galeria era dividida em três espaços. Os dois da
extremidade estavam vazios, o do meio com diversas cadeiras em forma de quadrado
e no centro um pequeno palco onde 8 ou 10 artistas meditavam de olhos fechados em
um círculo. Os visitantes aos poucos começaram a sentar-se e logo quase todas
as cadeiras estavam ocupadas, como se de fato um show fosse logo acontecer. Eu
fiquei de pé, no fundo da sala. Nessa altura Marina também estava na mesma
sala, apenas como mais um visitante, a espera de algo sem saber o quê. Foi
então que ela veio em minha direção e, já ao meu lado, me ofereceu um grande
sorriso e as palmas de suas mãos, como quem diz “vem comigo?”. Eu fui e ela levou-me a uma das salas
laterais, onde paramos juntos ao lado de uma das paredes. Marina sentiu meu
pequeno nervosismo e novamente me ofereceu o mais sincero sorriso, dessa vez
pude dizer que o que ela me queria passar era “fique calmo, eu também não sei o
que estou fazendo”, e com isso finalmente ela me deixou confortável. Com um pequeno
gesto, ela me pediu para que eu tirasse meu fone de ouvido. “Olá. Tudo bem?” –
disse-me aquela que não mais parecia um ícone da indústria da arte mas apenas
uma velha amiga. “A sua tarefa de hoje”, continuou, “será andar em câmera
lenta. Eu quero que você atravesse essa sala andando o mais devagar possível.
Quero que faça isso 7 vezes. A repetição é importante porque da primeira vez seu
corpo estará lento mas sua mente ainda estará como uma Ferrari. Eu quero que seus
pensamentos movam na velocidade do seu corpo, o seu objetivo é tornar-se o mais
consciente possível de si mesmo. A primeira travessia faremos juntos”. E com isso Marina pegou-me pela mão e
atravessamos o espaço de cerca de 25 metros em 4 minutos. Quando chegamos ao
fim, Marina pediu para que eu respirasse. Depois virou-se, tomou-me novamente
pela mão e atravessamos de volta a sala. Quando voltamos ao ponto de onde
saímos, Marina pediu-me “faça isso mais 5 vezes” e com um último sorriso foi
embora orientar outros desorientados. O tempo que a tarefa me tomou pareceu uma
eternidade, mas uma eternidade que eu tinha prazer de viver. Eu punha tanta
concentração na medida de meus passos e na frequência de meus movimentos que o
tempo de fato não importava. Ao fim de minha maratona, percebi que já éramos
vários naquela sala cumprindo a mesma tarefa. Dei lugar ao próximo e me dirigi
ao outro quarto. Na entrada, deram-me uma venda com a qual cobri meus olhos e
então guiaram meus primeiros passos depois dos quais fui solto no meio do
escuro, sem noção qualquer de onde eu estava ou de quem estava a minha volta. É
incrível como uma ideia tão simples pode resultar em numa experiência tão enriquecedora.
Privando-me de minha audição e visão, Marina me mostrou o quão dependente de
meus sentidos eu sou. Quando não se sabe onde se está ou pra onde se vai a
tensão é constante. Havia também no ar a eletricidade palpável da ânsia de
esbarrar em um estranho. Caminhei devagar por alguns minutos sem que nada
acontecesse. Raramente encontrava uma parede, sem minha visão a sala me parecia
muito maior do que era. De repente as mãos de um desconhecido encontraram meu
braço. O receio que eu antes tinha desaparecera completamente. Encostar por
mais de alguns instantes em um estranho no metro ou em um ônibus lotado pode
ser uma situação constrangedora para qualquer um, mas quando não se pode ver em
quem se está tocando não há embaraço algum. O sentimento é de excitação por
finalmente encontrar um outro alguém que encontra-se no mesmo escuro
intimidador que você. A curiosidade aumenta e a vontade de descobrir o outro
pelo tato (nesse momento o único sentido que nos resta) é muito maior do que em
qualquer outra situação. Sem constrangimento algum, éramos todos iguais e
percebíamo-nos à vontade. Por fim tirei minha vendo e me dirigi a saída da
galeria. Antes de sair pude ainda ver uma última vez Marina, sentada com muitos
outros nas cadeiras em forma de quadrado, de olhos fechados, em uma profunda
meditação. Marina não era mais especial que ninguém e não tentava ser. Pelo
contrário, ela estava ali como cada um de nós, deixando pra trás por algumas
horas tudo o que entorpece nossos canais sensitivos e experimentando o que pode
acontecer quando se para para fazer nada em conjunto. Marina gosta de fato de
chamar atenção para si mesma, mas faz isso porque ela é a logo marca de seu
trabalho. Todo o glamour e o renome que construiu pra si mesma ela deixa do
lado de fora da galeria, juntos com todos os nossos celulares e relógios. Sem
qualquer pretensão ou preconceitos, a artista estava mesmo presente.
Gabriel Abreu
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