A máquina
em que escrevo agora não aceita bem minhas ideias. Pra que me obedeça tenho que
bater com força em suas teclas senão as palavras não saem dela, como se de
quando em quando ela descordasse do que tenho a dizer. Talvez ela ache que
ridícula a ideia de estar sendo utilizada para escrever um texto
metalinguístico, afinal seu propósito há de ser maios que a expressão de si
mesma. Comprei-a em um mercado de pulgas no centro da cidade em um sábado
qualquer. Entre as muitas disponíveis ela tinha o menor preço, além da cor
mostarda que me chamou a atenção. Gosto muito de mostarda, a cor, apesar de
também gostar do condimento. Essa ultima frase custou a sair, acho que minha
máquina sente-se ultrajada. Tiro sua tampa superior para ver o mecanismo em
ação: suas molas estão à mostra, seus parafusos descobertos, todas as pequenas
engrenagens à vista. Vejo sua fita de tinta velha que ainda não troquei, nela a
marca de milhares de palavras que não escrevi, de mensagens que não são minhas,
destinatários que não conheço. A fita usada que vos escreve agora carrega a
soma de histórias, a atemporalidade de diversas cartas de amor, a
incomensurável insignificância de relatórios passados. E carrega também agora,
aos poucos, sua autodescrição. Pela fita usada percebo que essa máquina na
verdade não se importa em falar de si mesma. A dificuldade no datilografar não
é relutância sua, mas apenas o reflexo de sua idade. Ela não se importa que eu
a faça falar do que eu quero. Ela não se importa em falar de nada, pois essa
maquina não é uma dama de ferro, ela é a ferramenta à qualquer um que precise
materializar-se, é uma guerreira antiga.
Gabriel
Abreu
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